quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Sobre o Argos...





É, não teve jeito. Agora que o sol se pôs, quando ainda dá pra ver umas poucas nesgas de luz no horizonte, bateu um forte silêncio, daqueles que chegam e se impõem. Eu sabia: era sinal de chuva. Sem vento, sem luz. Nem é silêncio, é como se fosse uma surdez que foi chegando, a tal ponto que quase não ouço meus passos sobre o cascalho da estrada. A falta de sons cria um suspense. Começa uma brisa leve, que trouxe o forte cheiro de chuva, quase ao mesmo tempo em que os primeiros pingos começam a cair sobre meu rosto. Trovões.




Não teve jeito. A chuva só aumentou. Jamais eu havia passado naquela estrada, nem sabia se faltava muito ou pouco. A verdade é que meus pés já doíam muito porque esqueci de amarrar o cadarço do coturno desde a última parada. Com uma mochila tão pesada, não é algo tão fácil de fazer. Agora já não adiantava mais nada, o atrito do calçado com os pés já tinha me machucado.
Eu só me lembrava da prainha. Só tinha ido lá uma vez e mesmo assim, por outro caminho, bem diferente. Achei-a por acaso, há uns 6 meses antes. É uma paisagem linda: uma praia de areias douradas, cercadas de um lado pela água azul e de outro, por uma floresta vistosa. Era praticamente a bandeira brasileira. Sem sinal de qualquer habitação ou presença humana, a não ser a velha ponte de ferro, perdida no cerradão. E agora minha missão é conseguir chegar até lá de novo.




Eu caminho sozinho, mas Deus vai ao meu lado. Me lembro da quantidade imensa de gente que passa a vida inteira em meio a almoços de domingo lotados, mas que nem se dão conta de que estão completamente sozinhas. Minhas roupas estão encharcadas, o vento frio da noite zunia em meus ouvidos. A chuva grossa castiga em rajadas, me empurrando para trás. A estrada deserta tornou-se um lamaçal em pouco tempo. Sei que ainda falta muito, só não sei o quanto. A chuva batendo na minha cara vez ou outra até me atrapalha a respirar. Pouco enxergo. Meu olhar se fixa na estrada a pouca distância a frente dos meus pés. Tudo escuro, já que tenho que poupar a lanterna pra quando realmente for necessário. A visão deve também aprender a ver as coisas que a luz impede. No meio do breu, às vezes dá pra ver luzinhas amarelas. É uma casinha bem ao longe. E toda vez que vejo alguma, imagino a família que mora lá. Devem estar alimentados e dormindo bem quentinhos, ouvindo a chuva lá fora. E eu, ensopado, sozinho e com frio, com a imagem daquela praia deserta na cabeça. Essas vivências dão sentido diferente pra tudo, o valor é bem outro: todas as vezes que chove ou faz frio e estou bem abrigado, me lembro das vezes que passei por essas coisas e de quem deve estar sofrendo tudo isso nesse momento. Seja por opção, seja por situação. É assim quase todas as vezes que faço uma boa refeição. É inevitável lembrar das viagens em que a fome foi um desafio. E de quem deve sofrer isso todo dia, sem que seja uma opção ou desafio passageiro. A gente passa a valorizar muito mais cada coisa da vida.

Caminho já há mais de 6 horas. Em condições climáticas assim não se tem referência da paisagem e nem noção da distância já percorrida. Se eu estiver certo, chegarei num povoadinho e lá pegarei os trilhos até a tal prainha. Por enquanto nem sinal do povoadinho. Será que estou no caminho certo? Tenho que acreditar no meu faro. E nessas condições um pouco mais severas consegue-se um encontro consigo mesmo. A cabeça vê nessas horas um vasto campo para o devaneio. Ela voa e viaja quase livre e quanto mais ela voa, mais exercita a musculatura da criatividade. Fica claro nessas horas que a mente não é uma parte do meu corpo e sim, meu corpo é que é uma estrutura anexa tomada pela mente.




E a mente precisa que os sentidos estejam vivos. E, para isso, é necessário estímulos diversificados. Sinto frio e desamparo. Cansaço. O som da chuva batendo na orelha. A fome, nem dá mais pra sentir. Acho que ninguém faz idéia de onde eu estou. Nem o que estou passando. Mas agora já percebo uma iluminação fraca lá em cima daquele morro. Deve ser o povoadinho. E já fico um pouco mais animado por causa disso.
Entro na vila de ruas de bloquetes de concreto. Casinhas modestas ao redor da praça da igrejinha. Iluminação fraca e triste. Os postes mostram o quanto a chuva está mesmo forte. A enxurrada corre por sobre a rua. Frio. Não vejo nenhum sinal de vida, não ouço nenhum som além da chuva, nem sinto cheiro algum. Já deve ser bem tarde, nem parecia ser noite de reveillón. Será que errei a data? Só então percebo o quanto estou sujo. E agora estou um pouco mais perto da prainha de areias claras.

Volto a mergulhar no escuro. Alcanço os trilhos, por onde vou andando agora. Passo pela velha estação que eu conheci da outra vez. Sinto cheiro de dormente e diesel. Bem que eu poderia dormir nela. O telhado até me permitiria cozinhar. Dependurar as coisas pra secar. Mas minha vontade era acordar na praia deserta. Os dormentes estão bem lisos, pareciam ser de sabão. Com o meu cansaço e o peso da mochila torna-se perigoso um tombo ou uma torção. Mas do lado dos trilhos não dá pra andar. Existem valetas, o mato está alto. Prefiro ir escorregando pelos dormentes mesmo.
Esse trecho de trilhos eu já percorri da outra vez. Não pareceu tão longe como está sendo agora. Pelo relevo, percebo que ainda teria uma boa caminhada e meus pés continuam doendo muito. Depois de mais umas horas, vejo finalmente a ponte. Vê-la assim, um espectro quase invisível no meio da noite parece uma alucinação. Para atravessá-la, tenho que ir pé por pé porque abaixo dos dormentes só existe o precipício. Lá embaixo, escuto o rugido do rio, barulhento. Se vier o trem, terei que ser ágil e me apertar entre as vigas da ponte metálica.



A chuva não dá trégua. Mas agora tanto faz. Atravesso a ponte, deixo os trilhos e vejo a floresta. Meu próximo obstáculo. Terei que atravessá-la. Pego a lanterna e vejo a floresta tomada por teias de aranha. Acho um galho para ir limpando as teias por onde vou passando. Mas logo desisto, porque nem adianta, tem teia pra tudo quanto é lado. Por mais que eu me esprema, a mochila vai agarrando nos galhos e ramos da floresta fechada. Parece até proposital. O escuro tem algo de agressivo, a lanterna de cabeça, com lâmpada incandescente, só ilumina uma pequenina fração desse mundo vivo que é uma floresta, e já não sei realmente o que está me impedindo de andar. A tranqüilidade já não é natural, tenho que buscá-la racionalmente. É sinal de que tenho que parar. A distância entre as árvores parece ser menor do que a largura dos meus ombros. A vontade de voltar vai ficando cada vez maior. Mas voltar pra onde? Floresta é lugar fácil de se perder. Ainda mais numa noite daquelas. O cansaço aumenta muito. Vou controlando a mente, não é fácil lutar com/contra você mesmo. No fim da floresta, encontro o rio, mas já não há mais praia alguma. O rio está bem acima do leito normal, lambeu as margens e não há lugar sequer para montar a barraca. Fico feliz por estar sozinho, pelo menos não coloquei ninguém em enrascada. Agora a floresta acaba direto no rio. Não há espaço na floresta e nem fora dela que caiba a barraca. Depois de explorar bastante, encontro só um pequeno espaço, quase desbarrancando, que caberia minhas costas e meus pés encolhidos. Procurei, mas não há outra escolha. Monto a barraca que ficou parcialmente no ar e torço para que esse pequeno trecho não seja levado pelo rio durante a madrugada. Torço também para que amanheça um dia com sol, para secar minhas coisas, que estão muito pesadas.
Dentro da barraca, retiro o coturno. Minhas meias estão vermelhas de sangue. Devia mesmo ter amarrado o sapato. Mas não há arrependimento, essas histórias ficam mesmo marcadas não somente nas fotos, mas na carne também. Já adivinho que, por causa disso, pra voltar será outra peleja. Tenho a idéia de um terceiro caminho, também inédito pra mim, mas que tem grandes chances de ser mais curto.

Não há roupas secas. Mas pelo menos tenho a proteção da barraca e por isso o frio não é tão grande. Com a chuva forte lá fora não há como cozinhar. Mastigo meio miojo cru. É, não teve jeito. Feliz 2009. Agora tenho que dormir. Amanhã eu me viro. Isso se a barraca não despencar rio adentro.
(continua na próxima postagem, Sobre as antíteses...)

11 comentários:

  1. Gláucio
    Vejo que se interessa pela história da ferrovia. Entre no nosso Blog
    http://www.ribeiraovermelho.tur.br/

    Espero que goste!!
    Fica o convite para nos fazer uma visita

    Abraços

    Elísia

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  2. Meu querido Glaucio: fiz a caminhada com você passo a passo. Senti que sua descrição era a mais pura realidade ou talvez a realidade fosse até maior. Tive algo além de você... senti medo. Medo do silêncio. O silêncio que era "surdez"... Fortíssimo! Uma bela caminhada, uma ousadia, uma aventura maravilhosa, um jeito de mudar muita coisa e fazer um Ano Novo ser novo de verdade,não apenas na data, nas comemorações, na tradição. A determinação, o silêncio, o frio e a fome; o cansaço, a perda da noção de espaço e a paixão nesse momento preparam um salto quântico que precisa acontecer... Depois o sono inocente e um novo dia! Inexoravelmente o Sol! E eu aqui, em começo de madrugada, volto ao computador e me vejo escrevendo, talvez como você fez. Só que você foi. Eu penso ter tido um sonho.
    Belo texto descritivo meu querido amigo! Adorei que tenha compartilhado mais esta dentre tantas aventuras suas! Um grande abraço!

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  3. Caríssimo Gláucio,
    Noto que o amigo viveu uma grande odisséia em poucas horas de caminhada permeada de emoção, aventura, sacrifício, incertezas, ousadia, confiança, sangue, sorte e fé.
    O desejo de chegar a um pretenso e inusitado lugar, o desejo de vê-lo, alcançá-lo tal qual o conhecera outrora deu asas à imaginação e fortaleceu as parcas, mas ainda existentes energias para fazer o amigo continuar a caminhar tumo ao destino não ignorado.
    Os pensamentos, às vezes, tingidos pela preocupação com o lamaçal e panelas formados pela forte chuva que tombada no solo do caminho escuro e negro, trazendo dúvida, medo e questionamentos mil fizeram do nosso protagonista solitário do cenário real um verdadeiro comandante de ações decisivas e certeiras.
    Sinto-me feliz por ter sido brindado, nesta noite, por esse extraordinário texto de narrativa empolgante, detalhista e real que levou-me a embarcar contigo nessa entusiástica, vibrante e emocionante aventura pelos caminhos das pesquisas em busca de registros ímpares para a memória histórica de nossas passagens por este orbe indescritível.
    Nada mais justo que a intulação dessa belíssima narrativa, "Sobre o Argos", pois nessa aventura brilhantemente descrita, você mostrou-se ser nato observador, sagaz e vigilante, porém não posso furtar-me em não dizer que o maior brilho realmente foi a sua ousadia, coragem e determinação de prosseguir em frente até encontrar o que buscava. Mesmo o objetivo não estando como deixara anteriormente, devido sua modificação temporária pelas intempéries do tempo, assim como você também sentira tais mudanças na pele, valeu a pena, pois o bom pesquisador, mesmo cansado, fatigado, com fome, sede e frio jamais abandona suas fontes que poderão trazer-lhes novas descobertas.
    Parabéns!
    Edmar César

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  4. cano serrado ta com a Cacilda

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  5. Digno de Jack London,Thoreau...fico feliz em saber q vc existe!!

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  6. Fantástico.Não,realista.Não,apenas lindo.

    Abraços

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  7. Caro amigo, como sempre uma aventura após outra.
    De fato, são intensos os sentimentos que brotam do texto. Interessante como os desafios, dores e até sofrimentos são superados e ultrapassados quando se há um sentido, ou melhor quando damos um sentido à eles.

    Como diria Carlos Drummond de Andrade em seu poema:
    No meio do caminho

    No meio do caminho tinha uma pedra
    tinha uma pedra no meio do caminho
    tinha uma pedra
    no meio do caminho tinha uma pedra.

    Nunca me esquecerei desse acontecimento
    na vida de minhas retinas tão fatigadas.
    Nunca me esquecerei que no meio do caminho
    tinha uma pedra
    tinha uma pedra no meio do caminho
    no meio do caminho tinha uma pedra.

    Quando damos sentido àquilo que fazemos por certo estabelecemos conosco uma resistência e alegria, mesmo em meio as situações mais inóspitas possíveis. Interessante é que mesmo diante de obstáculos, pedras que surgem em nossas vidas podemos nos sentar, parar e choramingar ou usar delas para irmos alé de nós mesmos. Fazendo de cada obstáculo um degrau para que transcendamos a nossa própria existência!

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  8. Ah, vi o teu comentário antigo em uma das fotos em Orizona e o respondi. Sou distraído demais, cara! rsrsrsrs

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  9. olá seu blog é exelente ganhou mais um leitor....abraços...

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  10. Confesso que tive um pouco de angústia. Talvez o medo de estar sozinho. Ainda bem que estou fazendo uma leitura. rsrs. Vc é fantástico.

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  11. Que maravilha, Gláucio! Tanto o relato como as fotos.

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