domingo, 29 de outubro de 2023

Sobre o Dédalo...


Passeio pela floresta que plantamos juntos. Percorro a beleza dela na companhia da lua crescente. Cada uma destas árvores, deleite indizível. Era o âmago do nosso pacto.

É difícil entender que justamente o sucesso e o crescimento de cada árvore criou o labirinto em que nos separamos e nos perdemos.

Subo mais uma vez no espaço vazio entre o dorso e o limite da copa e sucumbo na tentativa de alcançar mais uma vez uma das cordas do tempo, que roçou docemente as minhas mãos.

Não tive coragem de fechá-las e agarrar assim a passagem do tempo. Relembro desapontado que assistir incólume à fuga do tempo têm sido meu talento secreto e deletério.

Ouço o canto do curiango. É tarde. O frio supera a coragem que alguma vez cultivei sozinho nestas noites escuras. Embora já não haja o que fazer.

Eu mudei bastante. Nunca esperei que depois da sua morte ainda veria o laranja daquelas tardes de antes. Eu também morri e já não me recordo tanto daquilo que foi nossa casa em solo alheio.

Também não esperava te ver, mesmo que de tão longe. Você não me viu, mas reconheci suas pegadas macias e por elas notei que já não carregava o meu peso.

Um estalo no céu mostra que o dia mais uma vez nasceu e por ele já escorre o mesmo laranja. Engano meu. Ao firmar bem a vista percebo que é um truque. Não é o mesmo laranja. É um novo tom de laranja. Aquela luz bonita ilumina agora o chão. Caminho tropeçando entre menires e escafandros e até o vento solfeja um poema que já não sei se doloroso ou de bonança. Talvez sejam dois poemas. Ouço ambos como se fossem iguais.

Encontro a nossa casa. Ela foi comida pelos minutos, incansáveis vorazes. A única coisa que permanece é o beiral. Por algum capricho da natureza ou escape da lógica, apenas os beirais flutuam no espaço. Um símbolo roto do que um dia foi o nosso futuro. Era aqui que nós nos sentávamos para comer frutas coletadas no cerrado e dar risadas das cambalhotas dos passarinhos.

Continuo a caminhar devagar ao mesmo tempo que sinto gotas de chuva que vão aumentando em quantidade e força. O cheiro, o som e aquela visão chuvosa são a reapresentação do maior espetáculo jamais visto em parte alguma do universo.

Lembra do deserto que havia antes?

Me conforta saber que na sua mudança você levou grande parte da floresta, embora o deserto tenha voltado a habitar a outra parte. Me disseram que agora você mora na cidade e só eu sei que sua floresta você guarda no bolso dianteiro, protegida por uma tela de vidro. Eu permaneço na floresta a uivar para cada lua cheia que flutue no céu vazio.