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O ônibus parou. Eu desci, peguei minha mochila e minha
bicicleta no porta-malas. A porta se fechou e lá se foi o ônibus embora.
Era uma manhã do mês de maio. Sul de Minas Gerais, o dia
acabava de amanhecer. Estava nas proximidades de Três Corações, na bifurcação
entre a estrada que vai para São Thomé das Letras (para onde seguiu o ônibus) e
outra, bem menos movimentada, para São Bento Abade.
Minha vontade era chegar em Ribeirão Vermelho para conhecer as belezas ferroviárias que ainda não conhecia. Para isso eu
inocentemente contava que conseguiria pedalar até Ribeirão Vermelho e voltar
para ainda dormir em São Thomé, num percurso total de 180km.
Para conseguir
isso eu contava com a bicicleta, caronas que surgissem e muita vontade. Como
obstáculos conscientes, além da longa distância, eu tinha um percurso por estradas
rurais que eu nunca havia passado e nem conhecia ninguém que tivesse feito
isso. Também tinha que pedalar pela BR Fernão Dias, rodovia que eu conhecia
dirigindo moto e carro. Mas de bicicleta tudo muda de figura.
Além desses obstáculos, eu tinha vários outros que me
aguardavam e eu nem imaginava.
Levava na mochila um pacote de bolachas, câmera
fotográfica, uma lanterna de cabeça, um mini-estojo de ferramentas, nenhuma
água e nenhuma roupa de frio, que são duas coisas que não considero primordiais
aqui no cerradão do Triângulo Mineiro. Água aqui no cerrado é muito fácil
encontrar. E o frio pode ser forte, mas nunca é insuportável. Se ele apertasse,
bastaria pedalar mais pra esquentar. Era o que eu achava. Seja como for, é preciso dar espaço para o imprevisível sem dar sorte para o azar.
Subo na bicicleta e fui enfrentar o desconhecido. Situação
que pra mim é muito prazerosa. Descubro que dali até São Bento Abade são apenas
6 quilômetros, com algumas subidas fortes, mas tranqüilas.
São Bento é bem pequena e configura-se em forma de um
retângulo estreito e comprido, dividido ao meio pela estrada, que chega na parte alta da
cidade e vai descendo até um riacho, que é o fim da parte urbana.
Tiro algumas fotos,
puxo alguma conversa, visito a igreja, faço uma oração e continuo minha
jornada. O asfalto acaba e começa uma estradinha tortuosa, com várias subidas e
descidas. Até chegar a rodovia Fernão Dias são apenas 25 km por um sobe-e-desce em
estrada de terra. Essa região possui paisagens muito bonitas, com morros,
riachos, casarões antigos e vou parando em tudo o que eu tenho vontade.
A parte
ruim é que não posso aproveitar as descidas para embalar porque no final de todas elas há mata-burros longitudinais (que em mineirês se diz "de comprido"), me obrigando a passar em
baixa velocidade, sem aproveitar o embalo pra subir.
Fico atento para encontrar
sinais ferroviários da antiga Rêde Mineira de Viação. Olhando os mapas, eu
deveria passar perto da estação de Salto, poucos quilômetros antes de cruzar os
trilhos. Mas depois de uma grande descida, encontro os trilhos prematuramente e logo depois, um senhor a cavalo.
Pergunto sobre a estação. Ele me disse que eu teria que
subir a estrada de volta. Quando comecei a regressar, veio um ônibus novinho
com apenas dois passageiros, parou e me perguntou se eu queria carona. Situação
muito estranha, um ônibus novinho numa estrada como aquela e parar sem eu pedir
carona. Mas resolvi aceitar e deixei a estação para outra oportunidade. O ônibus me
fez ganhar um tempo precioso por me poupar de uma bruta subida (por isso que devem ter
oferecido carona) e me deixou dentro da cidade de Carmo da Cachoeira. Tranco a
bicicleta, mas tenho certeza de que nem precisava, a cidade é muito tranquila, às margens da Fernão Dias. Percorro algumas ruas do centro que tem belos
casarões, faço um lanche e volto para a estrada.
De Carmo até o trevo para Lavras faltavam ainda uns 30
quilômetros. Mas pedalar na rodovia, apesar da facilidade do piso, é muito
ruim. A via é duplicada, de intenso movimento. Há muitos caminhões em alta velocidade que trafegam
pelo acostamento por causa das curvas fechadas. A medida
mais prudente é andar pelo acostamento da contramão, mas como as vias são
separadas por canteiros e divisórias de concreto, fazer isso seria abrir mão de
alguma carona que por ventura surgisse.
Fui pedalando, olhando mais pra trás do que pra frente,
desviando de destroços de pneus estourados, peças de caminhões, pedaços de pau,
pedras. Nem percebi que havia pulado mais uma estação, bem do lado da rodovia:
a de Carmo da Cachoeira, que fica fora da cidade.
Mas percebo que se aproxima um ônibus tipo escolar, já um
pouco velho. Desço da bicicleta e peço carona. O ônibus pára. Não há
porta-malas, a bicicleta teve que ir dentro, junto com os poucos passageiros,
que até me ajudaram a subir. A viagem continuou, mas o som constante do motor
barulhento dáva a impressão de que iria demorar mais de ônibus do que pedalando.
Demorou também alguém me fazer alguma pergunta. Era um ônibus de prefeitura,
com gente simples, muito desconfiada. Mas não é difícil quebrar essa barreira e puxar assunto. Conto sobre minha aventura, recebo
primeiro muitos desincentivos. Mas depois, começam algumas dicas, recomendações
e nomes a quem recorrer em caso de necessidade. A viagem flui e logo chega o
trevo em que devo descer. Paro e o ônibus segue o caminho dele e eu o meu. Agora
saio da Fernão Dias faltando só 15 quilômetros até Ribeirão. Começo de estrada
meio difícil de pedalar, muito movimentada e perigosa porque dá acesso a Lavras, uma
cidade grande.
O calor e o sol da tarde estavam fortes, desisto de tentar
carona e vou para a contramão pedalar no acostamento com mais segurança. Muitas
subidas, descidas, entradas, morros, placas. E a saída para Ribeirão, que nunca
chega? Finalmente chego na indicação da entrada de Ribeirão Vermelho, que traz a
distância de 5km.
Foram 5km de uma bruta descida que só acaba dentro da
cidade. Lá de cima, naquela distância, já dá pra ver a imensa rotunda. Já me
sinto com a missão cumprida, só de ver esses prédios ao longe. Fiquei
imaginando a volta, iria demorar um tempão subindo aquilo tudo. Os trilhos
aparecem à minha direita, assentados sob um pequeno aterro, provavelmente por
causa das inundações. A cidade é muito tranquila e de repente chego na ponte
rodoferroviária sobre o Rio Grande.
Já era 15hs. Na ponte, que comporta apenas
uma mão de direção, há um semáforo que controla os carros que vão, os que vem
e, algumas vezes por dia, os trens de carga. Quando o semáforo abriu para o meu
lado, tive que ir à frente de todos os carros. Todos têm muita pressa, porque
há pouco tempo antes que o semáforo feche de novo. Pensei em fotografar essa
travessia, mas não dá, porque além da pressão dos carros que vêm atrás, tenho
que prestar atenção para não deixar o pneu da bicicleta entrar em uma das
frestas longitudinais da ponte.
O lugar é de fato muito bonito e não dá pra acreditar que o
Rio Grande, que naquele ponto de grande só tinha o nome, conseguiria inundar
todo aquele vale, muito aberto. Há muitos prédios em ruínas, espalhados, e
tenho dificuldades em entender como aquilo tudo funcionava. Vou visitando essas
ruínas em cima da bicicleta mesmo e fazendo fotos rápidas. Converso
com alguns funcionários da prefeitura na estação.
15:30, torno a pegar a
estrada, agora fazendo o caminho de volta. Subo até a
estrada de Lavras mais rapidamente do que imaginava. Minha esperança é conseguir uma carona que me deixe ao menos
em Carmo da Cachoeira. Mas ninguém pára. Quanto mais o tempo passa, mais difícil
fica, é todo mundo cansado, querendo voltar pra casa ao mesmo tempo. Chego na Fernão Dias no final da tarde. A coisa começa a complicar. Lusco-fusco, acabaram-se
as chances de carona. O acostamento começa a ficar mais perigoso. Passo para a
contramão, para ver os carros vindo de frente e foi uma boa idéia. Coloco a lanterna na cabeça e
vou pedalando no canto do acostamento. Mas é muito difícil, os faróis dos
carros ofuscam a visão, não consigo enxergar ao mesmo tempo os carros e o lugar aonde estou passando, cheio de armadilhas, valetas, pneus, muretas. Para me enxergarem com mais facilidade, os carros e caminhões ligam o farol alto, mas não percebem que isso me deixa cego. Como se não bastasse, vez ou outra vem algum caminhão disputando espaço no acostamento comigo e nem sempre tenho para onde sair. Não faço
idéia de quanto ainda falta andar naquela rodovia e o barulho, a quantidade e velocidade dos carros
parece aumentar cada vez mais. Muito sufoco.
O esforço psicológico é tremendo. Não reconheço a estrada,
chego a imaginar que passei do ponto aonde deveria deixar a rodovia e pegar a estrada de terra. Sons, luzes,
distância, cansaço. O frio foi aumentando. Não aguentava mais pedalar na
rodovia. Várias horas se passaram até que ao longe vejo alguns carros de
polícia parados. Vou seguindo a sinuosa rodovia até chegar lá. Era um caminhão
tombado bem no ponto em que eu deixaria a rodovia para tomar a estrada de terra.
Era um pouco depois das 21hs. Finalmente a estrada de terra,
sem carros ou faróis. Agora vem uma descida muito, muito longa, aquela mesma
que o ônibus escolar me poupou. Era maio. Eu de camiseta molhada de suor, bermuda, de noite no
mato. No cerrado pelo menos o frio é seco, mas aqui no sul de Minas, não. Tenho dificuldades em usar o freio,
as mãos estão ficando muito duras. O frio começa a ficar preocupante. Como é
descida, não dá pra exercitar e vou sentindo cada vez mais frio. Depois da
descida, aparece uma subida, me esforço, mas não adianta: minhas roupas estão
geladas. Minha respiração condensa, vou
perdendo mais ainda a sensibilidade das minhas mãos, não sinto os dedos mexendo.
O céu estava muitíssimo estrelado. Belíssimo. Esqueço a estrada, paro pra tirar
umas fotos, mas não consigo. Apesar da beleza da noite, estou tremendo
bastante. Quanto mais parado eu fico, mais o frio domina. O tempo está se
esgotando e a temperatura cai rapidamente.
Subidas e descidas vão se sucedendo e tanto uma quanto a
outra são muito ruins para a minha condição. Meu estômago começa a embrulhar,
mas ele está vazio. O mal-estar vai ficando maior. Não consigo mais pedalar,
não dá. Desço da bicicleta e vou empurrando. Mas cada vez que me mexo, pior me
sinto, só que se eu ficar parado vou congelar. Não há sinal de nenhum lugar ou alguém
a quem recorrer ou chamar. A única coisa que consegui fazer foi tirar a
bicicleta da estrada, me deitar no mato molhado e gelado, ao lado da estrada de
terra vazia, silenciosa e escura. Só ouço o vento passando nas folhas. Somente
o vento e o meu pulso, ambos cada vez mais longe.
Acordo com alguém me sacudindo. No escuro, procuro assustado saber quem é, mas percebo
que foi meu próprio corpo tremendo forte de frio que me acordou. Não faço idéia
de quanto tempo fiquei ali. Estou um pouco melhor, já consigo pedalar e ignorar
o frio. O céu da minha boca está com sensação de queimado, sem sensibilidade.
Lá muito longe começo a ver as luzes amareladas de São Bento Abade e me animo um pouco. Mantenho a persistência, foco meu pensamento somente na
tarefa de mandar energia para as pernas. Preciso chegar vivo lá e aproveitar
enquanto posso.
Depois de algum tempo, entro na cidade silenciosa e parada.
Não sei quantas horas é, mas vejo que ainda há um cômodo de comércio aberto.
Percebo que é um pequeno barzinho, na subida perto da igreja. Me arrasto até
lá, sem conseguir pensar direito. Me sento e sob olhares muito preocupados da
dona, peço um refrigerante de 2 litros e um sanduíche. O refrigerante consegui
ir bebendo aos poucos até acabar. Mas o sanduíche, só consegui dar uma pequena
mordida e voltei e me sentir mal. Guardei para depois.
Pergunto sobre hospedagem, explico a minha situação e a moça
me instrui a ir até o único hotel da cidade, pouco adiante. Não há pensão,
albergue ou qualquer outro lugar de hospedagem.
Chamo no interfone e uma voz com sono atende. Pergunto se há
vagas e a pessoa foi até a porta me atender. Expliquei que precisava de uma
vaga só até amanhecer, quando continuaria minha jornada até São Thomé das
Letras. O proprietário me informou que o hotel estava lotado porque uma romaria
religiosa estava passando por lá naquele dia. Eu tento convencê-lo a me deixar
dormir em algum canto, corredor, sala, cozinha, etc, porque estava somente com
aquelas roupas de verão molhadas e não conhecia ninguém na cidade. E pagaria a
diária adiantado. O cara reafirmou que não tinha vaga. Boa
noite. A porta se fecha. E tudo bem.
Arrastei minha bicicleta até a saída para São Thomé. Dáva
pra ver as luzes da cidade vizinha, lá em cima do morro. Não estava longe, faltavam apenas 20km. Mesmo empurrando a bicicleta o tempo todo, acho que gastaria umas 4
horas. Lá estava meu quarto de hotel, cama e cobertor quentinho, banho quente, janta
e minhas roupas limpas me esperando.
Mas eu tive medo de passar mal mais uma vez no meio do nada.
Tento carona, até que um ou outro carro passam, mas no meu estado físico e com
uma bicicleta, sem chance.
Depois de algum tempo tentando, torno a descer a avenida completamente vazia até
chegar na rodoviária. Tranco a bicicleta num canto, encostada na parede e me deito
no chão embaixo dela. Não via sinal de ninguém na rua. Ventava muito frio, o chão queimava. Não dáva pra dormir.
Fui até os lixos, achei dois grandes pedaços de papelão. Com
um deles forrei o chão e com o outro me cobri. Consegui dormir facilmente.
Acordei com fome e peguei o sanduíche que estava guardado.
Comi tudo, fui tirar água do joelho e quando retorno à minha “cama” vejo um
cachorro dormindo nela. Não sei de onde ele veio, mas está tão frio que fico
com pena dele. Deixei aquele papelão pra ele e dormi no outro, sem me cobrir.
Acordo com os primeiros sinais da claridade, já estou melhor
e consigo pedalar. Há um outro cachorro dormindo nos meus pés. Aquele primeiro
sumiu e nem percebi esse outro chegar. Destranco a bicicleta, pego a estrada e,
apesar do frio, vou me aquecendo rapidamente. As cores do dia nascendo dão uma
violenta injeção de ânimo.
Vou vencendo quilômetro por quilômetro, subida após
subida, até chegar em São Thomé das Letras. Reencontro as pessoas do ônibus,
mas nem dá pra contar direito a minha aventura. Os ossos do meu rosto doíam
bastante e permaneceram assim por uns dois dias. Na noite seguinte, mesmo
dentro do quarto, com duas cobertas grossas e dentro do meu saco de dormir,
passei muito frio. Talvez fosse o corpo cobrando a conta da noite anterior. O
céu da minha boca continuou queimado, sem sensibilidade e ficou assim por mais
de duas semanas. Meu rosto também ficou queimado pelo frio. Alguns meses depois
percebi que todas as minhas unhas das mãos tinham um vinco/relevo que julgo
terem sido feitos nesse dia.
E, apesar de tudo, valeu a experiência. Pra gente teimosa
tem coisa que não adianta falar, tem que aprender na própria pele.