segunda-feira, 2 de julho de 2012

Sobre o bulício...





 (continuação do post anterior, Sobre a hipsografia...)

Acordei de madrugada e senti muito medo do sonho. A dor de cabeça continuava. Não ouvi mais o barulho, mas fiz uma oração pelas pessoas que sofreram acidentes ferroviários. Depois disso consegui dormir tranqüilamente e acordei junto com o sol, muito descansado. Não havia sinal algum do quê pudesse ter feito os sons daquela noite. Deixei pra lá.


Aproveitei para explorar um pouco as ruínas da vila e depois continuei a caminhada. Ali começa o pior trecho. Por ser uma passagem na serra, sem caminhos auxiliares, se eu topasse com algo que me impedisse de continuar, teria que voltar tudo de novo. Devido à topografia, não há caminhos paralelos ou desvios.



De cara o percurso começa num corte bem profundo, com mato que chega até a altura do peito. Parei e calcei meu par de perneiras. Há muitas cascavéis nesses trechos pedregosos. Fui caminhando e tateando o chão com os pés. É difícil avançar, de vez em quando há touceiras de vegetação espinhosa. Pedras em baixo, galhos em cima, mochila nas costas. É demorado.




Cortes que beiram os 20m de altura e aterros vão se sucedendo, às vezes são bons de caminhar, outras vezes tomam muito esforço e tempo. Nas vezes em que o barranco dos cortes acaba, a paisagem se transforma numa das mais maravilhosas facetas do município. 





Com certeza esse leito merece um projeto de uso interessante. Meu trabalho final de curso, feito nessa época, trata de uma proposta assim, só que para outro trecho, o da Mogiana entre Araguari e Uberlândia. Mas esse da EFG atualmente representa um potente risco de vida.




Com o mato a altura da cintura (isso no período das secas), o caminhante pode não perceber alguma das inúmeras valetas de escoamento pluvial que passam de um lado ao outro do leito. Se cair em uma enquanto caminha, a perna pode ficar presa e com o peso da mochila, o corpo vai pra frente, podendo causar uma fratura ou grave torção na altura do joelho. As cobras e marimbondos são um capítulo a parte. E o menos grave são os carrapatos, aos milhões nessa época do ano.



Mas a curiosa história do lugar e a paisagem lindíssima estavam valendo o risco e o esforço.






Aí de repente o leito acabou. Parece que uma chuva levou o aterro, dividindo o caminho em dois. No meio, um pequeno abismo que dá um pouco de trabalho para quem tá sozinho e levando peso na mochila. Fui até o fundo, onde há um riachinho transparente.



Reabasteci de água, tomei um delicioso banho gelado, fiz um lanche e tirei algumas fotos. A sombra ali é demorada, a encosta da montanha protege do sol direto até perto das 11hs. Ainda era 9h. E assim, numa pausa de uns 30 minutos, recarreguei todas as forças. Escalei o outro lado do aterro e continuei minha jornada.




Pouco a frente começam os bambuzais. No meio deles mais outra surpresa: uma antiga caixa d’água, feita no início da operação da ferrovia. Em forma de arcos, com parte superior em forma de ameias, chega a lembrar um castelo esquecido.



O tanque, que provavelmente era de ferro fundido, abastecia as caldeiras das marias-fumaças. Foi retirado há muitos anos, no desmonte dos trilhos. O acesso é tão difícil que as últimas pichações que encontrei são de 1984, quando ainda era possível fazer essa caminhada sem grandes dificuldades. Há algumas inscrições feitas em cimento com a data de ? - 8 - 1913.



O tipo de rocha dessa serra, que julgo ser algum tipo de arenito, ao ser cortado para a passagem da ferrovia, formou nichos e fraturas que se transformaram em moradia de abelhas. Com o sol se elevando e o calor aumentando, as abelhas se tornam um problema sério. Os registros de morte por picadas de abelhas na zona rural de Araguari não são raros, especialmente na serra da divisa com Goiás. Em caso de acidente, devido ao isolamento do lugar, o caminhante não deve esperar por socorro de terceiros. É preciso prestar atenção aos zumbidos e movimentos, pra entender se são abelhas, moscas ou besouros.



Aqui a altitude da serra já começou a aparentar estar na metade. Durante o percurso há muitas obras de contenção de barreiras, de drenagem, pilares de caixas d’água, bueiros, valetas. Penso que uma exploração mais cuidadosa poderá mostrar ainda mais coisas perdidas lá.







Todas essas obras mostram como foi cara a construção ferroviária nesse lugar, e quantas vezes a chuva e outros fatores fizeram com que a via tivesse que ser reconstruída nos pontos afetados.





Logo adiante as árvores começaram a se tornar maiores, um sinal de que se está mais próximo do solo. Algumas trilhas paralelas já são visíveis e pouco a frente o caminhante se vê em meio a uma floresta de eucaliptos: é o Horto Florestal, final da serra. Ele foi criado para abastecer a ferrovia, uma medida pioneira para poupar as árvores nativas. 




Existem muitas ruínas de construções espalhadas, escadarias, pilares, chaminés, olaria.



Segundo a senhora Lenira Guimarães Pinto, que nasceu nesse lugar e hoje é professora da UFG em Goiânia, havia também uma vila neste lugar, incluindo uma venda (comércio) e escola. Hoje não há mais nenhuma construção de pé, com exceção de caixas d’água. Dona Lenira é filha do ferroviário Benedito Xavier Pinto, um dos responsáveis pela formação do Horto Florestal. Ela me disse que o desabamento de uma dessas caixas d'água tirou a vida de uma criança.





Mais adiante há também um monumento perdido no meio do “nada”, fazendo homenagens aos soldados “mortos de 2-2-36” (que era um domingo). Por ser o final do trecho de serra, aconteceram muitos acidentes.
Pela presença de um “G.Freios” entre os nomes da placa, deduzo que seja um guarda-freios, dando a entender que foi mesmo um acidente ferroviário, envolvendo soldados do 6º Batalhão de Caçadores de Ipameri-GO. A 150km por via férrea, era a força do exército mais próxima de Araguari, nessa época. Quem faz a homenagem é o Major Amílcar Salgado. Já vi uma placa assinada pelo mesmo major de frente ao Batalhão do XX, na cidade de Goiás. Dona Lenira não soube dar maiores informações sobre esse monumento.




 Um pouco depois da placa tornei a encontrar com uma estrada de terra. Ela agora continua por sobre o leito ferroviário. Muitas britas do lastro ainda estão lá e os pregos de linha ainda são facilmente encontráveis.




Uma estrutura de concreto com dois andares ainda permanece firme à margem e diz-se que era um britador.




A estrada vez ou outra passa por cortes bem estreitos. A dificuldade de adaptação destes para uso rodoviário fez com que recentemente fosse aberta uma estrada lateral subindo o barranco e dividindo o movimento em duas mãos, para evitar acidentes nessas passagens estreitas. Os veículos que sobem a estrada passam dentro do corte e os que descem usam a nova passagem, acima do corte. Há bastante vegetação. Poucos quilômetros adiante, finalmente cheguei às margens do rio Paranaíba. O calor era intenso, me desvencilhei da mochila e pulei no rio com roupa e tudo para refrescar. Consegui terminar a travessia, mais um trecho conquistado.



Ali ainda há os pilares da antiga ponte que também levava o nome do Engenheiro Bethout. E conforme a fonte, também levou o nome de Emílio Schinoor, outro engenheiro de ferrovias complicadas Brasil afora. Do outro lado da ponte está o município de Anhangüera-GO, um dos menores do Brasil em área, em população e em eleitores. A construção da Hidrelétrica de Itumbiara, a mais de 100km rio abaixo, inundou a ponte e motivou a construção do novo trecho ferroviário. A ponte metálica, mesmo submersa, foi vendida. A retirada dela precisou de uma operação especial do comprador, o sr. Cézar Borges de Oliveira, mais conhecido como "Cézar do Ferro-Velho". Ele me contou que a cada ano aguardava as águas baixarem para cortar a ponte aos poucos. Os trechos cortados eram previamente amarrados à pipas (grandes tanques metálicos). E quando tudo estava pronto, bombeavam ar para elas, até que flutuassem, puxando o trecho cortado à margem do rio. Dizem que ainda há um trecho lá embaixo, que se desprendeu e afundou. A ponte fez e ainda faz muita falta para Anhangüera. Hoje a curta travessia do rio é feita através de uma balsa de operação diurna e particular. A balsa também leva o mesmo nome do Engenheiro Bethout, morto num acidente ferroviário na serra, durante a construção da linha.



Pouco tempo depois de chegar até a balsa consegui uma carona na carroceria de um caminhão, de volta a Araguari pela poeirenta estrada Araguari-Anhangüera, que passa do outro lado do Morro da Mesa. Essa outra face possui aspecto bem diferente do lado por onde a ferrovia passava.


Depois de tantas descobertas, estava de volta à cidade. Era final da tarde de domingo. Nas ruas, um tanto de gente barulhenta, afogadas em um tanto de coisas barulhentas. Na minha opinião, as cidade é que são o mundo dos loucos e desequilibrados de verdade.


Proposta de Parque Linear do Leito Erradicado da CMEF