Noite quente, de lua cheia. Ótima oportunidade para pedalar
fora da cidade. Normalmente eu até levo lanterna, mas sempre deixo na mochila, prefiro
não usar. É bom tentar usar outros sentidos e parar de privilegiar a visão.
Aliás, quando
é lua nova é bem fácil enxergar de noite, desde que não se use lanterna. Com o escuro constante, a
visão vai se acostumando, ainda que a percepção seja diferente.
Mas... a lua cheia traz a ilusão de que se está
enxergando, quando na verdade não está o suficiente. E justamente por essa falsa impressão
de estar enxergando é que surgem muitas das várias histórias de assombração, das quais, na minha opinião, boa parte se devem aos mal-entendidos da lua-cheia.
Pedalar em estradas de floresta com lua cheia é
especialmente interessante. A luz que penetra por entre as folhagens vai
causando desenhos no chão, não permitindo saber se são buracos, sombras ou
algum bicho. A alternância entre luz e sombra não deixa o olho se acostumar nem
com a claridade, nem com o escuro. E além disso tem a velocidade da bicicleta, que torna a compreensão das coisas um pouco mais tardia. E, na lua cheia, parece que os bichos ficam mais
silenciosos, as flores noturnas ficam mais cheirosas e as idéias ficam menos
lineares. É bom pedalar na lua cheia para fazer as idéias caminharem por
lugares diferentes.
E a cabeça começa a divagar. Começo a pensar nas ações
humanas e na ciência. Ato contínuo, fico pensando se há o bem e se há o mal.
Continuo pedalando e as idéias vão passeando. Será que há o que chamamos de “sobrenatural”? Tentando dar racionalidade para o assunto, digo pra mim mesmo que se o sobrenatural existir, então ele obviamente será algo natural, regido pelas leis naturais. E já torno a
pensar nas histórias de assombrações, contadas às centenas, muitas com muitos
elementos semelhantes. Terão algum mínimo fundamento? Claro que não. Assombrações, que coisa mais boba. Só que lembro de
alguns mal-entendidos que já aconteceram comigo e dos quais ainda não achei
explicação racional.
Continuo pedalando sozinho em meio ao claro-escuro.
Silêncio. A noite já não está tão quente assim, já batem algumas brisas mais
frias. Já não sei se é frio ou se já é o medo dos meus pensamentos. Se existir assombração, ou elas querem somente assustar as
pessoas ou querem se comunicar de alguma forma, pensei. É preciso ter coragem para manter o contato. Mas é óbvio que nada
disso existe. Eu, sozinho no mato, em noite de lua cheia, para provar o que eu tinha
certeza, estufo o peito e digo, bem alto: “SE EXISTIR ASSOMBRAÇÃO, QUERO VER
UMA AGORA!”
No exato momento em que eu acabei
de falar a última palavra, escuto um estrondo. Pranchas velhas de madeira batendo forte umas com as outras. Sem
entender nada e morto de medo, vejo um ser ali bem na minha frente, disforme, que saiu
sabe lá de onde. Umas duas vezes mais alto que eu. Ou talvez um pouco mais. Dentes
bem grandes, sobre-humanos. Lembro muito bem dos dentes, já próximos ao meu
rosto. E no próximo milésimo de segundo já começo a comprovar pra mim mesmo: “tá
vendo, existe assombração sim, estou vendo uma agora.” Podem falar o que quiser, eu
vi, ela está agora aqui na minha frente e, diante desta constatação não existe nada no mundo que me fará
mudar de idéia.
E, no último milésimo de segundo, escuto um “SAI DA FRENTE, DIACHO!”
Demorou um pouco pra eu entender que quase, por bem pouco, quase fui
atropelado por uma carroça e seu cavalo, bem sólidos e naturais, de acordo com as leis da física.
Moral da história: usem lanterna nos pedais noturnos.
Muito bom.
ResponderExcluirAdorei!! :)
ResponderExcluirFala sério, quando se pedala na madrugada com lua cheia, as idéias voam assim? Quero experimentar este exercício erudito e filosófico o quanto antes hehehehe.
ResponderExcluirGostei da parte que diz "e o sobrenatural existir, então ele obviamente será algo natural, regido pelas leis naturais", pois é exatamente como eu penso.
MUHAUAHUAHUAHUAH o final eu ri demais, "SAI DA FRENTE, DIACHO!"